Existe no Museu Nacional de Arte Antiga uma pintura anónima do Inferno que é quase contemporânea do Auto da Barca do Inferno. Poderá precedê-lo em dois anos. É uma pintura de qualidade e contém intenção semelhante de crítica à sociedade.
A primeira observação sobre ele seja esta: aqui temos um recanto infernal com condenados, enquanto na obra de Gil Vicente temos o julgamento, donde se pode sair condenado ou salvo, seguir para o Inferno ou para o Céu.
Uma vista global do quadro permite facilmente concluir que ele se organiza por grupos ou conjuntos de condenados, recordando talvez o que se passa na Divina Comédia. Teríamos pelo menos cinco conjuntos bastante bem definidos.
Vejamo-los em pormenor, grupo a grupo. Repare-se também, desde já, que o tormento do fogo é mais violento na parte central e direita do quadro que na esquerda.
A este primeiro grupo, o da esquerda, penso que poderíamos chamar o grupo das jovens insensatas, ao modo do que se passa numa parábola evangélica. Trata-se de mulheres bastante jovens, de corpos que o artista soube pintar muito elegantes, cujo tormento principal parece direccionado para as suas cabeças. Foram condenadas pela sua falta de juízo... Mas veja-se também como estão suspensas. Posição bem incómoda e humilhante!
Dá a impressão que aquele diabo repelente e com aspecto de cadáver em putrefacção roubou algures um assador de castanhas e que agora se diverte a atormentar com ele as pobres das raparigas.
O pintor parece deliciar-se com o espectáculo do corpo feminino: se a rapariga da esquerda cobre a face com as mãos, a da direita não o faz, o que lhe disfarçaria os seios, que estão muito expostos para um quadro que se pretenderia piedoso. Aliás, poder-se-ia dar a esta condenada uma expressão mais vincada da dor, mais atormentada. Isso distrairia a atenção da figura feminina como tal.
O segundo grupo seria o dos gulosos ou bêbados, pois o seu tormento relaciona-se com a comida ou com a bebida. É o grupo com mais diabos (que ao todo são oito, mas, se não metermos na conta o “presidente” deste espaço, Satanás, ficam sete, que é o número tradicional dos pecados capitais). Os dois da esquerda devem estar a introduzir «petiscos» escaldantes na boca dos condenados – aquecidos no fogareiro. O terceiro despeja um odre na boca da sua vítima.
Repare-se nas pranchas de madeiras a que os condenados estão ligados e nas ferragens que lhes prendem os pescoços.
O conjunto central é constituído por cinco homens num caldeirão aquecido por altas labaredas e que poderá ter algum líquido. Dois dos homens são frades (possuem tonsura), o que é importante, pois implica uma dura crítica a personagens especialmente vinculados à Igreja e levanta a questão de quem seria o encomendador da pintura. A expressão do rosto dos três leigos denota mais violência de tormento que a dos religiosos. O frade que está de frente para o espectador parece dar-se menos mal com a situação.
O caldeirão, as pegas e as correntes que o sustêm também merecem alguma atenção. É um inferno apetrechado sem olhar a gastos. A madeira que arde parece pinho.
Ao lado direito, um diabo muito emplumado carrega mais um frade, um frade sodomita ou homossexual, pois está preso ao seu parceiro de sodomia, que é um jovem.
Quanto à sodomia, ela é sempre uma ameaça em meios unissexuais, como o dos conventos, da tropa ou até de cadeias.
No Ceilão, ao tempo em que por lá andava Camões, a sodomia era muito comum e havia sido introduzida pelos monges budistas. Algumas de regras religiosas estabelecem normas que poderiam ser destinadas a afastar a tentação sodomita. O antigo Regulamento de Disciplina Militar legislava muito duramente a seu respeito.
Fora destes meios, e numa sociedade onde haja uma exigência moral razoável, esta cegueira de quem não vê que o par do outro sexo é o seu complemento natural quase desaparece.
Ao fundo direito, encontra-se um casal certamente adúltero, recostado principalmente a um homem deitado, que também aparenta ser frade. Repare-se que, além da corda que os ata nos ombros que estão juntos, têm uma outra nas mãos direitas, que deve significar a do seu matrimónio. A mulher, apesar das chamas que lhe atingem algumas partes do corpo, não aparenta grande tormento. Com o homem, passa-se o contrário.
Amontoam-se aí outros condenados.
Há ainda, no canto superior direito, mais condenados, num panelão de boca para baixo, a desafiar a gravidade; mas o conjunto percebe-se mal. As chamas atingem-nos de baixo.
Presidindo a este espaço infernal, senta-se num trono outro diabo também emplumado, com uma grande corneta e cujos olhos se dirigem para o lado das raparigas. Numa mesa que tem perto, há papel, pena e tinta para anotações.
A indumentária destes diabos tem a ver com a dos indígenas brasileiros, cujo conhecimento era recente e que se verificou serem antropófagos.
Chegados aqui, podemos concluir:
§ que o pintor ou o seu encomendador organizou o quadro por temas (as moças insensatas, os gulosos, os amantes fora das regras, os sodomitas, os frades prevaricadores...);
§ que, embora a maior parte dos condenados seja masculina, se colocam mulheres nos dois extremos, com grande visibilidade corporal, pois o corpo feminino surge bem destacado, ao contrário do dos homens, que apresentam venda na zona genital nos casos mais em evidência;
§ que os membros das ordens religiosas são dura e directamente visados (quem promoveria uma tão dura crítica a um grupo social como este?)
§ que nem sempre os rostos denotam grande sofrimento.
§ A nudez dos corpos lembra-nos que estamos em tempos de Renascimento.
Uma pintura como esta foi vista, se calhar, pelo Gil Vicente do Auto da Barca do Inferno e remete para o mesmo momento cultural e religioso, até para um semelhante empenho pré-reformista em intervir na sociedade. Um empenho que não parece muito convincente, convenhamos.
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