quarta-feira, 27 de outubro de 2010

2 - Os "Diálogos dos Mortos" de Luciano

Diálogo X

CARONTE E HERMES

Foi este diálogo que inspirou mais de perto Gil Vicente para a composição do Auto da Barca do Inferno (e das outras duas Barcas). Damos aqui o começo dele. Para a parte restante, enviamos o leitor para o seu texto completo em italiano.

CARONTE

Ouvi qual é a vossa situação. O barquito é pequeno, como vocês vêem, e está comido do bicho e mete água por muitos pontos e se oscilar para um bordo e para outro afundar-se-á, de casco para o ar. Por outro lado, vocês chegam em tão grande número, ao mesmo tempo, cada um transportando grande carga. Ora, se vocês embarcarem com tudo isso, receio que depois vos arrependais, sobretudo quantos não sabem nadar.

UM MORTO

Como havemos de fazer então, para ter uma navegação feliz?

CARONTE

Eu explicar-vos-ei. E preciso que embarqueis nus, deixando todo esse supérfluo na margem porque, assim como estais, dificil­mente o barco poderá receber-vos.
E tu, ó Hermes, trata, a partir de agora, de que nenhum deles seja recebido que não venha em pelo, depois de deitar fora, como eu já disse, a bagagem. A pé firme, junto à escada. Passa-os em revista, recebe-os, forçando-os a subirem nus.

HERMES

Dizes bem e assim faremos. Quem é este que está em primeiro lugar?

MENIPO

Eu cá sou Menipo. Mas repara, ó Hermes, a saca e o cajado foram lançados ao pântano. E o manto coçado nem sequer o trouxe, muito de propósito.

HERMES

Entra, Menipo, o melhor dos homens, e ocupa o lugar de honra ao lado do piloto, bem alto, para observares toda a gente. E esta beldade, quem é?

CARMÓLEO

Carmóleo, de Mégara, o querido cujo beijo custava dois talentos.

HERMES

Ora vamos lá despir a beleza e os lábios mais os beijos e a espessa cabeleira e o rosado das faces e a pele toda. Está bem assim! Ficaste expedito. Sobe agora! E esse aí da púrpura e do diadema, esse com ar de fúria! Quem és tu?

LAMPICO

Lampico, tirano de Gela.

HERMES

Então, Lampico, apresentas-te com tanta coisa?

LAMPICO

O quê? Devia chegar nu, ó Hermes, um homem com fun­ções de tirano?

HERMES

Tirano, coisa nenhuma, mas morto, sim! Por isso, deita fora tudo isso!

LAMPICO

Vê tu, a riqueza lá vai!

HERMES

Deita fora também a vaidade, ó Lampico, e a altivez. Caindo aqui dentro, elas farão peso no barco.

LAMPICO

Então, deixa-me ao menos ficar com o diadema e o manto.

HERMES

De modo nenhum, mas deita também isso fora!

LAMPICO

Seja! Que mais ainda? Lancei fora tudo, como vês.

HERMES

E a crueldade e a insensatez e a insolência e a cólera, lança também tudo isso fora!

LAMPICO

Vê lá, estou despido.
[...]
 
 Luciano, Diálogos dos Mortos, trad. de Américo da Costa Ramalho, Coimbra, 1989, INIC

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