quarta-feira, 27 de outubro de 2010

1 - A maré e a cena final

Na Maria Moisés, chama Camilo uma vez a Gil Vicente «grande realista». Essa classificação é a mais justificada para o autor do Auto da Barca do Inferno. De facto o auto fornece uma amostragem do que era a sociedade lisboeta das décadas iniciais do séc. XVI que tem muitos ares de realidade.
Ele é do Inferno porque quase todos os candidatos às duas barcas que há em cena – a do Inferno e a da Glória – embarcam na primeira. De facto, contudo, ele é muito mais o auto do julgamento das almas.
Apresentam-se em cena um nobre, D. Anrique; um Onzeneiro (homem que vivia de emprestar dinheiro a juros muito elevados, um agiota); um Sapateiro, que parece ser abastado, talvez dono de uma oficina; um Parvo, tolo; um Frade namorador com a sua dama; uma alcoviteira (proxeneta); um judeu usurário; um Corregedor e um Procurador, dois altos funcionários da Justiça; um Enforcado; e Quatro Cavaleiros. Só o Parvo e os Quatro Cavaleiros entram na barca do Anjo, todos os outros rumam ao Inferno.
Esta obra dá margem a leituras muito redutoras, que grosseiramente a transformam numa farsa. Ora ela é muito justamente uma moralidade. Isto é, se Gil Vicente faz a análise impiedosa das moléstias que corroíam a sociedade em que viveu, não era para se ficar aí, como nas farsas, mas para propor um caminho decidido de transformação, um caminho que é aliás o mais genuinamente evangélico.
Passemos já às nossas considerações sobre o lugar da maré neste auto e sobre a importância da cena final.
O auto abre com uma cena bem representativa da Lisboa do tempo, a duma barca que se prepara para partir. Começa o Diabo:

À barca, à barca, oulá,
Que temos gentil maré!

Um pouco mais adiante, na cena da cena do Fidalgo D. Anrique, apregoa o mesmo Diabo eufórico:

À barca à barca, senhores!
Oh que maré tão de prata!
Um ventesinho que mata
E valentes remadores!

E ainda na mesma cena:

À barca, à barca, boa gente,
Que queremos dar à vela!
Chegar a ela, chegar a ela!
Muitos e de boa mente!
Oh que barca tão valente!

E, de modo mais directo ou menos, continua a falar da maré, como quando se dirige ao parvo:

Entra, tolaço eunuco,
Que se nos vai a maré!

Depois, como que se esquece. A barca enche, ele continua bem-sucedido. Só que, já quase no final, tem uma surpresa que o deixa em pânico: o seu barco está em seco, pousou no leito do rio (ou braço de mar) e não se desloca. Como há-de ele levar tamanha colheita de condenados para o seu destino? Mas não se dá logo por vencido:

Alto! Todos a tirar,
Que está em seco o batel!
Saí vós, Fr. Babriel,
Ajudai ali a botar!

Ou então, noutra versão:

Alto! Todos apear,
Que está em seco o batel!
Vós, doutor, bota batel,
Fidalgo, saltai ao mar!

Como um mal nunca vem só, surgem agora em cena os Quatro Cavaleiros. Deles dirá o Anjo, perante o Diabo embasbacado:

Ó cavaleiros de Deus,
A vós estou esperando,
Que morrestes pelejando
Por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo o mal,
Mártires da Santa Igreja,
Que quem morre em tal peleja
Merece paz eternal.

Para o penúltimo e último versos há estoutra versão: «Santos por certo sem falha, / que quem morre em tal batalha».
Mas isto não é tudo. Estes fidalgos são «cavaleiros da Ordem de Cristo», isto é, apresentam-se com vistoso trajo próprio, tomam perante o Diabo uma atitude de recusa frontal e até desprezo e, entoando uma bela cantiga construída segundo os hábitos poéticos do tempo, apelam à plateia para que mude radicalmente os seus comportamentos para poder embarcar na barca do Anjo:

À barca, à barca segura,
Guardar da barca perdida:
À barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais
Pela vida transitória,
Memória, por Deus, memória
Deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais;
Porém na barca perdida
Se perde a barca da vida!

Há outra versão da cantiga, mas o sentido é o mesmo. E é com esta grande cena que termina o auto, isto é, quando o Diabo, vencido, pasmado com a inesperada situação que se gerou em cena, tem a sua barca em seco.
A mensagem é assim clara: os contemporâneos de Gil Vicente andavam esquecidos, distraídos da «barca da vida», mas era preciso acordar, mudar.
Que há de mais evangélico que isto?
Claro que poderemos discordar de Gil Vicente quanto à especial santidade de ir para o Norte de África fazer guerra contra o Mouro. Mas ele entendia-a como uma guerra de libertação.
“África foi de cristãos, / mouros vo-la têm tomado / ...”, escreveu ele na Exortação da Guerra.


2 - Os "Diálogos dos Mortos" de Luciano

Diálogo X

CARONTE E HERMES

Foi este diálogo que inspirou mais de perto Gil Vicente para a composição do Auto da Barca do Inferno (e das outras duas Barcas). Damos aqui o começo dele. Para a parte restante, enviamos o leitor para o seu texto completo em italiano.

CARONTE

Ouvi qual é a vossa situação. O barquito é pequeno, como vocês vêem, e está comido do bicho e mete água por muitos pontos e se oscilar para um bordo e para outro afundar-se-á, de casco para o ar. Por outro lado, vocês chegam em tão grande número, ao mesmo tempo, cada um transportando grande carga. Ora, se vocês embarcarem com tudo isso, receio que depois vos arrependais, sobretudo quantos não sabem nadar.

UM MORTO

Como havemos de fazer então, para ter uma navegação feliz?

CARONTE

Eu explicar-vos-ei. E preciso que embarqueis nus, deixando todo esse supérfluo na margem porque, assim como estais, dificil­mente o barco poderá receber-vos.
E tu, ó Hermes, trata, a partir de agora, de que nenhum deles seja recebido que não venha em pelo, depois de deitar fora, como eu já disse, a bagagem. A pé firme, junto à escada. Passa-os em revista, recebe-os, forçando-os a subirem nus.

HERMES

Dizes bem e assim faremos. Quem é este que está em primeiro lugar?

MENIPO

Eu cá sou Menipo. Mas repara, ó Hermes, a saca e o cajado foram lançados ao pântano. E o manto coçado nem sequer o trouxe, muito de propósito.

HERMES

Entra, Menipo, o melhor dos homens, e ocupa o lugar de honra ao lado do piloto, bem alto, para observares toda a gente. E esta beldade, quem é?

CARMÓLEO

Carmóleo, de Mégara, o querido cujo beijo custava dois talentos.

HERMES

Ora vamos lá despir a beleza e os lábios mais os beijos e a espessa cabeleira e o rosado das faces e a pele toda. Está bem assim! Ficaste expedito. Sobe agora! E esse aí da púrpura e do diadema, esse com ar de fúria! Quem és tu?

LAMPICO

Lampico, tirano de Gela.

HERMES

Então, Lampico, apresentas-te com tanta coisa?

LAMPICO

O quê? Devia chegar nu, ó Hermes, um homem com fun­ções de tirano?

HERMES

Tirano, coisa nenhuma, mas morto, sim! Por isso, deita fora tudo isso!

LAMPICO

Vê tu, a riqueza lá vai!

HERMES

Deita fora também a vaidade, ó Lampico, e a altivez. Caindo aqui dentro, elas farão peso no barco.

LAMPICO

Então, deixa-me ao menos ficar com o diadema e o manto.

HERMES

De modo nenhum, mas deita também isso fora!

LAMPICO

Seja! Que mais ainda? Lancei fora tudo, como vês.

HERMES

E a crueldade e a insensatez e a insolência e a cólera, lança também tudo isso fora!

LAMPICO

Vê lá, estou despido.
[...]
 
 Luciano, Diálogos dos Mortos, trad. de Américo da Costa Ramalho, Coimbra, 1989, INIC

3 - Um "Inferno" anónimo de 1515

Existe no Museu Nacional de Arte Antiga uma pintura anónima do Inferno que é quase contemporânea do Auto da Barca do Inferno. Poderá precedê-lo em dois anos. É uma pintura de qualidade e contém intenção semelhante de crítica à sociedade.

A primeira observação sobre ele seja esta: aqui temos um recanto infernal com condenados, enquanto na obra de Gil Vicente temos o julgamento, donde se pode sair condenado ou salvo, seguir para o Inferno ou para o Céu.
Uma vista global do quadro permite facilmente concluir que ele se organiza por grupos ou conjuntos de condenados, recordando talvez o que se passa na Divina Comédia. Teríamos pelo menos cinco conjuntos bastante bem definidos.
Vejamo-los em pormenor, grupo a grupo. Repare-se também, desde já, que o tormento do fogo é mais violento na parte central e direita do quadro que na esquerda.

A este primeiro grupo, o da esquerda, penso que poderíamos chamar o grupo das jovens insensatas, ao modo do que se passa numa parábola evangélica. Trata-se de mulheres bastante jovens, de corpos que o artista soube pintar muito elegantes, cujo tormento principal parece direccionado para as suas cabeças. Foram condenadas pela sua falta de juízo... Mas veja-se também como estão suspensas. Posição bem incómoda e humilhante!
Dá a impressão que aquele diabo repelente e com aspecto de cadáver em putrefacção roubou algures um assador de castanhas e que agora se diverte a atormentar com ele as pobres das raparigas.
O pintor parece deliciar-se com o espectáculo do corpo feminino: se a rapariga da esquerda cobre a face com as mãos, a da direita não o faz, o que lhe disfarçaria os seios, que estão muito expostos para um quadro que se pretenderia piedoso. Aliás, poder-se-ia dar a esta condenada uma expressão mais vincada da dor, mais atormentada. Isso distrairia a atenção da figura feminina como tal.

O segundo grupo seria o dos gulosos ou bêbados, pois o seu tormento relaciona-se com a comida ou com a bebida. É o grupo com mais diabos (que ao todo são oito, mas, se não metermos na conta o “presidente” deste espaço, Satanás, ficam sete, que é o número tradicional dos pecados capitais). Os dois da esquerda devem estar a introduzir «petiscos» escaldantes na boca dos condenados – aquecidos no fogareiro. O terceiro despeja um odre na boca da sua vítima.
Repare-se nas pranchas de madeiras a que os condenados estão ligados e nas ferragens que lhes prendem os pescoços.

O conjunto central é constituído por cinco homens num caldeirão aquecido por altas labaredas e que poderá ter algum líquido. Dois dos homens são frades (possuem tonsura), o que é importante, pois implica uma dura crítica a personagens especialmente vinculados à Igreja e levanta a questão de quem seria o encomendador da pintura. A expressão do rosto dos três leigos denota mais violência de tormento que a dos religiosos. O frade que está de frente para o espectador parece dar-se menos mal com a situação.
O caldeirão, as pegas e as correntes que o sustêm também merecem alguma atenção. É um inferno apetrechado sem olhar a gastos. A madeira que arde parece pinho.

Ao lado direito, um diabo muito emplumado carrega mais um frade, um frade sodomita ou homossexual, pois está preso ao seu parceiro de sodomia, que é um jovem.
Quanto à sodomia, ela é sempre uma ameaça em meios unissexuais, como o dos conventos, da tropa ou até de cadeias.
No Ceilão, ao tempo em que por lá andava Camões, a sodomia era muito comum e havia sido introduzida pelos monges budistas. Algumas de regras religiosas estabelecem normas que poderiam ser destinadas a afastar a tentação sodomita. O antigo Regulamento de Disciplina Militar legislava muito duramente a seu respeito.
Fora destes meios, e numa sociedade onde haja uma exigência moral razoável, esta cegueira de quem não vê que o par do outro sexo é o seu complemento natural quase desaparece.

Ao fundo direito, encontra-se um casal certamente adúltero, recostado principalmente a um homem deitado, que também aparenta ser frade. Repare-se que, além da corda que os ata nos ombros que estão juntos, têm uma outra nas mãos direitas, que deve significar a do seu matrimónio. A mulher, apesar das chamas que lhe atingem algumas partes do corpo, não aparenta grande tormento. Com o homem, passa-se o contrário.
Amontoam-se aí outros condenados.
Há ainda, no canto superior direito, mais condenados, num panelão de boca para baixo, a desafiar a gravidade; mas o conjunto percebe-se mal. As chamas atingem-nos de baixo.
Presidindo a este espaço infernal, senta-se num trono outro diabo também emplumado, com uma grande corneta e cujos olhos se dirigem para o lado das raparigas. Numa mesa que tem perto, há papel, pena e tinta para anotações.
A indumentária destes diabos tem a ver com a dos indígenas brasileiros, cujo conhecimento era recente e que se verificou serem antropófagos.

Chegados aqui, podemos concluir:
§  que o pintor ou o seu encomendador organizou o quadro por temas (as moças insensatas, os gulosos, os amantes fora das regras, os sodomitas, os frades prevaricadores...);
§  que, embora a maior parte dos condenados seja masculina, se colocam mulheres nos dois extremos, com grande visibilidade corporal, pois o corpo feminino surge bem destacado, ao contrário do dos homens, que apresentam venda na zona genital nos casos mais em evidência;
§  que os membros das ordens religiosas são dura e directamente visados (quem promoveria uma tão dura crítica a um grupo social como este?)
§  que nem sempre os rostos denotam grande sofrimento.
§  A nudez dos corpos lembra-nos que estamos em tempos de Renascimento.

Uma pintura como esta foi vista, se calhar, pelo Gil Vicente do Auto da Barca do Inferno e remete para o mesmo momento cultural e religioso, até para um semelhante empenho pré-reformista em intervir na sociedade. Um empenho que não parece muito convincente, convenhamos.
2
1